quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Narciso

Ele acordou cedo. Ao levantar-se da cama, tomou o cuidado de desviar seu olhar do demasiado grande espelho ornamentado em mogno fosco que sua mãe mandara afixar ao lado do guarda-roupa. Desdizer o que o espelho insistia em lhe contar era sua primeira tarefa matinal – e ele já a fazia com certa destreza.

A manhã era cálida e quieta, como se a cidade nunca tivesse tido outra estação além daquele calmo verão. A caminho do trabalho, sob as sacadas de metal negro tipicamente mediterrâneas, o Tejo parecia ser a única coisa que seguia seu rumo, ininterrupto. Quisera ele ser um rio. Queria, ao menos uma vez, conhecer a sensação de sempre saber onde e para aonde correr e de ter o destino estampado em detalhes nos atlas. Queria experimentar, por um átimo de segundo, essa paz tão ímpar de caber dentro de si próprio – e, ao transbordar, saber depois se recompor no leito...

Alcançara agora um trecho da ruela em que, delineando o rio canalizado, distribuíam-se carvalhos de copas irregulares e ritidomas acinzentados. Ele desceu por uma escada estreita de pedra para dentro do canal e parou no quarto ou quinto degrau, quando a água gelada invadiu seus sapatos lustrosos de verniz preto. Tremeluzindo sobre a superfície ao sabor da aragem, lá estava ela: sua imagem bruxuleante, a inimiga que tanto relutava em enfrentar. Por mais tempo que ele conseguiria se lembrar travou batalha muda; era insustentável que o impetuoso e decidido rio abrigasse o reflexo de tamanho medo de viver.

Num ato do que ele classificaria como coragem, engolfou pés, mãos, corpo, alma e covardia nas libertadoras águas cor de chá mate. Aquela seria a primeira e última vez que ele tinha um destino seu, ainda que o trilhasse por veredas que não lhe pertenciam. Ele sentiu seus pulmões se encherem – talvez de excitação por fazer parte, pela primeira vez, de uma sina maior que o enredo de sua própria vida. Sua visão falhava e a mudez de pensamentos começava a anestesiar seu cérebro. Teve, entretanto, um vislumbre de sua mãe e lembrou-se de como ela ficava bonita em seu robe escocês salpicado de pérolas de água depositadas pelo nevoeiro de uma manhã fria.

Aquela imagem, bem como todas as outras, dissolveram-se pouco a pouco. Foi através desse processo genuíno de desintegração que ele conseguiu integrar-se e ser o precursor de si mesmo. Foi nessa promessa de se perder por arroios e estuários que ele pôde encontrar uma maneira de dar forma ao que tinha vivido e deixar isso tudo subir à tona, num último esforço. Ele sabia que estava se despedindo de alguma coisa indesejada, alguma coisa que ia morrer, e queria articular uma frase que pelo menos abreviasse aquilo que falecia. Afinal, lhe ocorreu uma palavra: “acaso”, aquela bússola que nunca funcionou muito bem e que foi a única coisa que achou seu caminho até a superfície.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Luz e sal

Tudo o que o céu soube fazer nesse entardecer foi anuviar-se de novo, percebes? Parece que ele queria proteger as luzes da cidade da humilhação de se encontrarem com o brilho ímpar das estrelas; preservá-las de se sentirem exatamente como me sinto em relação às coisas: pequeno.

Não vou gastar seu tempo a falar sobre o já surrado clichê do grão de areia numa praia, não, moço. Meu trabalho é menos nobre: devo ir de encontro ao que resta do homem quando a linguagem se esgota. Encontrar não a minha essência, mas o rastro nojento dela mundo afora... E o que tenho para hoje é de uma insipidez pungente.

É inútil tampar a minha boca, moço. As palavras vão escapar por entre seus dedos, ainda que espremidas. São palavras que precisam ser ditas, precisam chegar aos ouvidos de quem está fora da quarentena social em que vivo.

Sinto como se tivesse nascido morto e desde sempre já dei meus passos sozinhos numa outra vida, numa outra frequência. Acredite moço, eu queria pertencer à raça humana, ao mundo real, queria que essa auto-suficiência e aparente independência estampadas no meu rosto fossem reais. Mas tudo o que é real agora é a minha necessidade ofegante de uma mão que me liberte da teia que teima em me paralisar, teima em me fazer temer aranhas muito maiores que eu. Um alguém que compartilhe comigo ao menos seu silêncio e me faça começar a ser, começar a existir, me dê à luz.

Ah, moço, é assustador acreditar que a solidão é nosso destino maior. Acho mais confortável crer que desde os primórdios tudo já tem um sentido inicial que origina tantos outros. Talvez sejamos a luz que guia e o sal que tempera as vidas de pessoas que ainda conheceremos ou até já fazem parte da nossa vida, assim, sem a gente notar. Não ria, moço. Talvez até eu mesmo os seja, de alguma maneira. Eu sou a luz do mundo, mas ninguém me vê; eu sou o sal da terra, mas ninguém me sente aqui.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Tenho escrito menos

E pensado na vida um pouco mais. Pude observar que a vida é composta de etapas - sejam elas curtas ou longas. A todo o momento em que chegamos ao final de uma delas, passamos a enxergar o mundo – e nossas escolhas – de uma maneira diferente. Somos, enquanto humanos, instáveis, suscetíveis a mudanças. É um tanto quanto heraclítico, mas não há nada que vivemos que não nos transforme. O rio em que outrora me banhei já não é o mesmo e, eu, muito menos.

E é justamente essa fugacidade que tempera a vida. Os altos e baixos mantém o sangue correndo nas veias, o coração cálido e nos guarnece de novas forças para encarar o próximo desafio. E é acreditando piamente no que escrevo que estou partindo e deixando muita coisa para trás... Não por falta de coragem ou de oportunidades, mas sim por falta de covardia.