quarta-feira, 14 de julho de 2010

Confissão

Já estava passando da hora de postar isso aqui.

Confesso que cada vez mais pessoas vão passando pela minha vida, numa velocidade vertiginosa, que só tende ao crescimento linear. Dificilmente consigo captá-las. Vejo muitas pessoas apenas uma vez, durante uma fração de segundo e então mentalmente traço um perfil delas. Não há tempo para analisá-las ou aprofundar-me nelas talvez pela minha própria falta de interesse de fazer parte do mundo real, do mundo dos humanos. Entretanto, às vezes, permito-me aproximar um pouco mais de certos indivíduos, na esperança de que algum deles me faça enxergar a sua essência. Na esperança de que me compreendam e me acolham, que me aconselhem com o seu silêncio, que me moldem, nem que seja um pouquinho, para que eu me torne um ser humano melhor. É exaustivo procurar, mas sei que essas pessoas existem. Suas simples existências deveriam me fazer ter um pouco mais de fé. Na humanidade. Na perenidade de laços afetivos e de sentimento de admiração intensa. Em mim mesmo. Não é o que acontece. Se me apego demais a uma pessoa, me frustro logo em seguida. É essa minha mania de estabelecer parâmetros de perfeição e querer que todos se adequem a eles. Se fogem dos meus padrões, começo a me afastar delas, assim passam a significar cada vez menos para mim. E quando olho para trás, reflito sobre a brevidade de eventos que tinham tudo para traçar um longo caminho e simplesmente se desfazem, como pó ao vento. Eu tenho cada vez menos fé. No futuro...

sábado, 12 de junho de 2010

Sobre namoro e regência verbal

Com o advento do inverno e do dia dos namorados, Sofia resolveu ir ao shopping com seu melhor amigo, Fred, para comprar um aquecedor e um cardigan cinza para o seu namorado. Ele amava cores sujas.

Depois de terminada a maratona de compras, os dois se sentaram exaustos nas cadeiras de carvalho do Café Nice e pediram o expresso que só aquele lugarzinho especial na Afonso Pena sabia fazer.

Como Sofia estava muito calada, o amigo puxou assunto:

- Hmmm, Tenho certeza que o Tiago vai adorar esse cardigan. Vai ficar muito bom nele.

Sofia bebericou a bebida quente e balançou a cabeça em desdém.

- Fred, você não sabe a sorte que tem por estar solteiro. Na maioria das vezes as coisas não são como nós pensamos. Sabe, a coisa vai caminhando pra rotina. – Explicou Sofia.

Já fazia algum tempo que a moça começara a evitar seu namorado. A relação havia esfriado.

- Está dizendo que acha melhor ficar sozinha?! – Admirou-se Fred. Ele era um romântico assumido, embora suas desilusões com as antigas namoradas fossem numerosas o bastante para fazê-lo pendurar as chuteiras, ou melhor, o coração.

- Não estou sozinha. Tenho você, a mamãe, o Rodrigo, a Lola... Mas estou decidida Fred. Acho que vou deixá-lo. – Disse Sofia teatralmente, terminando o café e se levantando.

- Vai me deixar?

- Falei que ia deixá-lo, não que ia deixar-te. – Riu Sofia ingenuamente. - Agora vamos. Acho que deve chover.

- Ah sim, claro. Português nunca foi o meu forte... – murmurou Fred no seu tom menos irônico possível.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Sobre sentimentos e sacos de papel

Houve um tempo em que trabalhei em um supermercado próximo como embalador. Você sabe, com 18 anos a gente quer mais é ganhar nosso próprio dinheiro. O salário não era lá muita coisa, mas eu já conseguia comprar meus livros e dar presentes decentes.
Como eu era totalmente inexperiente no quesito ‘trabalhar em supermercado’ (na verdade nunca fiz porra nenhuma), uma moça me ensinaria tudo antes de eu começar. Ela devia ter seus 28 anos e tinha uma expressão severa. Dos seus lábios finos nunca saía um bom-dia.
Ela se manteve fixa atrás do balcão e disparou a falar. Falou da carga horária. Falou de como proceder em assaltos. E ressaltou várias vezes a importância de se separar os produtos na hora de embalar para os clientes. “É claro que você não colocaria o papel higiênico e biscoitos juntos num mesmo saco”, dizia ela enquanto me entregava o uniforme de trabalho.
Pareceu fácil no começo, mas logo em enrolei todo. O enxaguante bucal pode ficar junto com o detergente? Ou ficava junto com o detergente, ou então com o óleo de cozinha e a maionese. E que tal pegar um saco só pra ele? Será que pode?
“Não há problema nenhum em usar outro saco para o enxaguante. Na dúvida, é sempre melhor deixar cada coisa em seu lugar” – Disse ela pegando outro saco de papel. – “E isso não vale só aqui no supermercado” – acrescentou.

Foi nessa mesma época que eu entrei em depressão. A faculdade me pressionava muito, os amigos do colegial sumiram e meus pais se separaram. Além disso, me apaixonei... E te digo, foi a pior dor que senti até então. Então larguei o emprego, tranquei a faculdade e só sabia dormir. E dormir. E dormir.
Um dia acordei e estava chovendo. Chamei pelo meu irmão. Ninguém respondeu. Só a chuva. Procurei por alguma coisa pra comer e não achei nada pronto, então fui ao supermercado. Aquele mesmo da rua de baixo, onde trabalhei meses atrás. Estaquei na entrada quando vi a mesma moça no balcão ensinando o ofício a um outro cara um pouco mais novo que eu. Me lembrei.
Foi nesse dia que, debaixo de muita chuva, abri meu coração e peguei três sacos: um para minha família e meus amigos, outro para faculdade e um pra você.

sábado, 1 de maio de 2010

Antes do entardecer

Depois de um mês sem postar nada, voltei. Trouxe mais um texto sem nexo, dessa vez um soneto. Prometo ser mais frequente. Sério.


Antes do entardecer

Preciso realmente descobrir

Um modo de sobreviver,

Uma razão pra sorrir.


O sol está a pino: já é quase meio-dia.

Mas ainda não encontrei

Alguém que me tire dessa nostalgia,

De sonhos mortos que sonhei.


Meus suspiros esperançosos ecoam

dentro dessa tarde hostil

E para longe meus pensamentos voam


pousando nessa
vida febril.

Os anos vividos ainda nostálgicos ressoam

Na minha memória estudantil.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Amar, verbo intransitivo

Dessa vez trouxe um textinho doentio para vocês:


Já me bastava sentir seu perfume. Já era suficiente ouvir sua voz toda manhã. Eu estava com você, mas você não estava comigo, eu sabia disso. E mesmo que uma parte de mim desejasse ir além, isso tudo já era suficiente. Acho que a minha covardia me impedia.

Do seu abraço não fluía o mesmo calor que fluía do meu, mas eu o apreciava da mesma forma. E só de me lembrar do seu abraço já me sinto aconchegado.

Quando você sorria pra mim, era como se eu me sentisse em casa. Era daqueles sorrisos que a gente não consegue parar de olhar nem quando a pessoa já cerrou os lábios.

Eu vivo para te amar, mesmo sabendo que você dificilmente fará o mesmo. Talvez no fundo da minha alma eu saiba que isso é uma bobagem, mas é tão mais confortável continuar sonhando com nós dois...

Sei que um dia as circunstâncias nos distanciarão, mas a partir daí começarei a viver da sua falta. Mas sempre viverei respirando você. Eu te amo e isso basta, não precisa de complemento.

terça-feira, 2 de março de 2010

Peculiaridades do tempo

Hoje a entediante aula de Linguagem de Programação II me incentivou a escrever isso. Afinal, escrever é sem dúvida infinitamente mais interessante do que programar, né?
Bom, na verdade não fiz um texto. Apenas queria compartilhar com todos a observação que vivenciei agorinha mesmo aqui na escola.

"A gente cresce, fica mais alto, mais velho... Mas todos nós ainda somos um bando de crianças correndo no parquinho desesperados para entrar num grupo."

sábado, 30 de janeiro de 2010

Meninos de rua

Ontem ele acordou feliz. Era feriado. Isso significava que era um dia de fazer absolutamente nada e ele esperava fazer isso da maneira mais prazerosa possível. Nada de escritório, nada de sapatos apertados, era um dia livre. Ligou o radinho no volume máximo e foi para o banheiro. Enquanto tentava aceitar que definitivamente sua voz não era mais bonita do que a de Chris Martin, ia ouvindo o noticiário da manhã.

Ele odiava noticiários. Era sempre a mesma coisa. Assaltos, assassinatos, enchentes, secas. Sempre as mesmas catástrofes, os mesmos infortúnios assolavam o mundo. Nada que surpreendesse ele, um habitante do planeta, mesmo que fosse relativamente jovem. Droga. Ele não queria ter pensado isso. Não conseguia pensar em pessoas que nem tinham água potável enquanto ele tomava um banho demorado. Um minuto depois tinha parado de cantar e já não sorria.

Enxugou-se lentamente e se encarou no espelho do armarinho do banheiro. Bela porcaria de humano era ele. Já estava achando melhor voltar para a cama, fechar as cortinas e colocar o celular para despertar quando fosse meio-dia. Talvez o sono tivesse a resposta para aquela inquietação que ameaçava se transformar em culpa e estragar seu feriado. Já estava sentado na cama quando do radinho saiu uma voz adulta que apelou:

- Dia das crianças. Qual o sentido de comemorar esse dia e dar vivas a Nossa Senhora Aparecida se hoje a infância quase não existe mais? Todos nós temos hoje a oportunidade de provar que a insensibilidade não dominou as grandes cidades. Proponho que cada um faça pelo menos hoje, uma criança feliz. Ninguém é tão pobre que não possa dar um brinquedo, um doce, um sorriso. Vamos mostrar que nos importamos com a infância desamparada de São Paulo e que de fato fazemos algo para que ela seja diferente. Nem que seja um pouquinho.

Aquela voz penetrou na sua pele como uma emissão radioativa. Atravessou seus tecidos e aqueceu seu coração. Quando se despiu e começou a vestir suas roupas domingueiras, já cantarolava novamente e achava seu timbre tão bonito quanto o do Chris e até mesmo melhor que o da Susan Boyle. Tomou o café na sua varandinha, dando um bom dia para a São Paulo que despertava. Saiu de casa e tomou o ônibus. Ele já sabia onde faria sua boa ação do dia.

Ele chegou à Praça da Sé e deu uma olhada a sua volta. O que ele procurava não era muito difícil de encontrar. Não, não. Hoje ele não olhou para as bancas de jornal e nem pensou em ir à livraria. Tocado pelo espírito da caridade ele só tinha olhos para aquelas figuras esquálidas e sombrias que ora brincavam na fonte, ora corriam perto da estação de metrô. Largadas, como restos de lixo. Uma coisa interessante é que ele nunca reparou nelas. Sempre passava por ali, mas nunca deu atenção. Ele era mesmo um ser humano repugnante. Como ele podia ver aquela cena todo dia e nunca ter feito nada?

Antes tarde do que nunca, pesou ele consigo mesmo, enquanto arrastava seus passos até eles, pensava no que seria melhor: Dar-lhes os cem reais que trouxe? Ir comprar doces e trazer para eles? Analisando o leque de possibilidades, ficou a poucos metros das crianças e disse:

- Hey, vocês! – Imediatamente alguns deles se levantaram assustados, pensando que ele fosse alguém do conselho tutelar que não dava sossego nem nos feriados. – O que gostariam de...de...comer?

Silêncio. E a falta de léxico pairando entre eles.

Por fim, o garoto que parecia ser o mais velho disse:

- Três hambúrgueres daqueles que vende ali para a gente. Três para cada.

Bom, o dinheiro dava tranquilo. O problema era que tinha trazido apenas sua nota de cem reais. Droga. Vendedores são muito chatos para trocar grandes quantias.

- Mas eu...eu só tenho essa nota. É muito. – disse ele a tirando a carteira.

- Não tem problema. – sorriu o garoto. Com uma agilidade espantosa arrancou a nota da mão dele e saiu correndo. Os outros o acompanharam rindo.

Parabéns, que legal. Nem dinheiro para voltar para a casa ele tinha. E o tour da caridade ia acabar ali pelo visto. Se odiou por não ter tentado trocar o dinheiro em algum lugar primeiro. Sentou-se num banco próximo e desacreditou nas pessoas. O mundo era assim mesmo, sempre foi e sempre será. Além do mais...

Antes de concluir seus pensamentos alguém cutucou suas costas. Ele se vira.

- O troco. – disse o menino de rua sorrindo. Numa mão ele equilibrava três hambúrgueres junto ao peito e com a outra estendia um punhado de notas e pratinhas.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O novo mal do século

Nesse post vou dar de certa forma uma 'continuação' ao assunto anterior: a idealização de modelos de vida que são totalmente inadequados à vida real. Pois então. Quando as pessoas contagiadas pelo romantismo começam a falar de amor, geralmente fico calado. Mas certo dia fui indagado sobre o amor e comecei a pensar. E pensando, fui escrevendo.

Quando se fala em uma grande propaganda, muitos podem até achar que se trata de algum novo lançamento da moda, de uma nova tecnologia ou da Coca-Cola. Mas não. Mesmo que a maioria das pessoas não perceba, a maior propaganda existente é a do amor romântico. Ele existe há muito tempo e todos o conhecem muito bem. O que vemos na televisão? Novela romântica. O que ouvimos no rádio? Música romântica. Nos dias de hoje existe uma campanha, difundida por todos os meios de comunicação, que procura nos convencer de que só é possível ser feliz vivendo um romance, que nos traz a ilusão do amor verdadeiro. E tal campanha é tão grande quanto o desejo de viver esse amor. Por isso, são poucos os que suportam ouvir que, apesar de toda a felicidade prometida, ele não passa de uma mentira. Sem contar que traz mais tristeza do que alegria, além de muito sofrimento.

Histórias da literatura, como Romeu e Julieta ilustram bem como o amor romântico é uma impossibilidade. Quanto mais obstáculos impedem que o casal fique junto, mais apaixonados eles se tornam. Em um determinado momento da história, interesses econômicos introduziram esse tipo de amor no casamento, transformando todo seu percurso. Até a Revolução Industrial, no final do século XVIII, a maioria das pessoas morava no campo, junto com todos os membros da família, o que fazia com que sentissem afetivamente amparadas. Os casamentos aconteciam por motivos econômicos e políticos, por isso é que eles duravam a vida toda. Já que não havia romance nem expectativa de satisfação sexual, não havia decepções, e ninguém pensava em se separar. Com o surgimento das indústrias, as pessoas que moravam no campo foram atraídas para os grandes centros industriais, as cidades que surgiam. Assim nasceu a família nuclear - mãe, pai, filhos -, agora sozinhos na cidade. Para que o casal suportasse viver assim, longe daqueles com quem tinha laços afetivos, inaugurou-se o amor romântico no casamento. Era como se todos dissessem: “Não consigo ser feliz sozinho, preciso de alguém. Compulsivamente”. E essa procura nos faz desacreditar no amor, pois só há desilusões.

Desde bem pequenos já nos fazem engolir o amor romântico, como se fosse um pacote econômico do governo. E isso não deve ser discutido, e sim cumprido. Uma criança já toma sua sopinha com a babá, assistindo à novela das sete. Na hora de dormir, a mãe conta a história de Branca de Neve ou Cinderela, e assim por diante. A mídia e os contos de fadas idealizam esse modelo de vida onde tudo dá certo no final, todos se casam e o vilão é sempre pego. Todas essas expectativas e idéias do amor romântico são passadas como uma única forma de amor, e aprendemos a sonhar e a buscar um dia viver tal encantamento. Esses padrões estão inteiramente fora do alcance da maioria das pessoas e isso conduz a vivências de fracasso. E se não conseguimos obter tudo o que mostram revistas, novelas, publicidade e amigos, é natural pensarmos que o problema somos nós. Um bom exemplo é o do culto ao corpo: “malhação” exagerada, cirurgias desnecessárias, regimes de emagrecimento absurdos. Não há limites para nos tornarmos bonitos e atraentes, e o sofrimento envolvido nestas atividades pode ser imenso, levando por vezes a mutilações irreversíveis, e até mesmo à morte, como comprovam os casos fatais de anorexia que tanto deram o que falar há pouco tempo.

O amor romântico não corresponde à realidade e traz decepção e frustração. Vivendo esse amor, idealizamos a pessoa amada e projetamos nela tudo que gostaríamos de ser ou como gostaríamos que ela fosse. Não nos relacionamos com a pessoa real, mas com a inventada. É este o preço salgado que pagamos por uma liberdade sem precedentes na vida pessoal. Assim, se iniciou século XXI sob a marca de um conflito entre as facilidades proporcionadas pelo desenvolvimento da civilização e o que essa mesma evolução acarreta no plano da experiência subjetiva, aí incluídas as relações amorosas. É preciso perceber que não há um padrão de vida. Não existe um padrão de felicidade onde a regra número um é casar e ter filhos. Só é extremamente necessário que cada um tenha coragem. Coragem não para se entregar a instintos e impulsos, mas de enfrentar a si mesmo e as próprias ilusões infantis.


sábado, 9 de janeiro de 2010

Contos de fadas modernos

Você já notou como tudo o que assistimos e lemos influencia nossa personalidade? Um claro exemplo disso são os contos de fadas. Uma garotinha que cresceu ouvindo a babá contar a história de A Bela Adormecida vai crescer e esperar pelo seu príncipe encantado acordá-la com um beijo. Um garoto que mesmo relutante ouviu algum conto de fadas em sua vida pressupõe que a masculinidade de um homem se resume em procurar sua donzela, ser corajoso o bastante enfrentar dragões, bruxas e diversos perigos sem titubear. Na vida real não é isso que acontece. Uma adolescente sofre desilusão após desilução, após descobrir que o seu príncipe não era tão encantado assim. Um rapaz descobre que não é tão fácil quanto parece enfrentar os monstros da vida sem hesitar ou mostrar um pouco de sensibilidade. Os contos de fadas criam uma realidade paralela, onde são idealizados padrões de vida que são totalmente incompatíveis com nossa realidade.

Foi seguindo essa linha de pensamento e tomando como base o livro Contos de Fadas Politicamente Corretos - Uma Vesão Adaptada aos Novos Tempos do norte-americano James Finn Gardner (ótima leitura, fica aí a dica) que no ano passado, minha professora de Português fez uma proposta inédita de redação: sugeriu que fizéssemos um conto moderno, que se adequasse à realidade atual e urbana em que vivemos. Esse conto deveria ser baseado em um conto de fadas conhecido, já existente. Aqui está o conto escrito por mim e revisado pelo meu grupo de trabalho:


Bela Entorpecida


Nos dias modernos, na grande Belo Horizonte, havia um casal muito pobre, que vivia na periferia da cidade. A mulher se chamava Nazaré e seu marido, Josivaldo.
Num dia mais cinza do que o comum, Nazaré chegou do trabalho exausta. Ela estava ajudando em uma reforma na casa de João e Maria e sentia enjoos frequentes. Pensou que pudesse ser devido aos doces e guloseimas na obra, mas ela estava enganada. O HCG comprovou: Nazaré estava grávida! Ela pensou consigo mesma: “Mais uma boca pra alimentar! Vou ter que fazer hora extra!”

Josivaldo trabalhava como traficante e estava agora numa viagem rápida à Colômbia para trazer a mercadoria. Ao retornar e saber da notícia, não se alegrou também. Eram tempos difíceis. Sustentar a casa, a família e os policiais não era fácil. “Preciso aumentar o carregamento”, pensou ele. Disse ele para Nazaré:

- Você vai ter que fazê umas faxina na casa da Branca de Neve, muié. Lá, com aquela anãzada toda, tem sempre muita coisa pra limpá. Vai se mexê porque agora a coisa ta preta, viste.

A família já tinha três filhos e com a chegada de Bela Entorpecida a situação exigiria medidas drásticas. Então Josivaldo resolve delegar algumas tarefas aos seus filhos:

- Ô Cleiton, cê trata de vendê essas bala aqui no sinal, senão quem leva bala é tu.

- Raimunda, tu vai trabaiá de manicura aqui no morro.

- Bastião, tu vai pro meio da rua fazer malabarismo com essas bolinha aqui. Imbaxadinha, impiná no nariz, num me interessa. Te vira.

Com o tempo, a situação se agravou. Os nove meses se passaram e a Bela Entorpecida nasceu. Teve tiroteio no morro em comemoração e um pagode na laje para os mais íntimos. Todos queriam conhecer a filha do respeitado traficante.

- Pode chegá povo, a menina é bonita memo. Minha cara. – Disse Josivaldo enquanto trocava a faixa de reprodução no seu radinho furtado.

Durante a festa, chega um negão alto como um armário segurando um fuzil AR15 na mão. Ele estava com cara de poucos amigos, ou melhor, de nenhum amigo.

-Fiquei sabendo que tu tá dando festinha e não fui convidado, qualé? Tá me tirando?

Josivaldo quase se engasgou com o churrasco de gato.

- Tu fica sabendo, mermão, que isso não vai ficar assim não... Quando essa mina tivé 15 anos eu vou fazê dela a maior viciada do morro. Ela vai se injetá até por dentro dus olho.

Todos ficam aflitos e na mesma hora Nazaré escondeu todos os narcóticos que tinha em casa. O pai, preocupado, decide largar esse trabalho e desde as primeiras palavras da Bela Entorpecida já a ensina dos males que a droga faz.

Bela Entorpecida cresce e vira uma emo. Toda de preto e escutando Evanescence, ela percorre o morro, melancolicamente, sempre com seus fones de ouvido. Talvez ela tivesse medo de ouvir o que o mundo tinha a dizer para ela. Ela era estranha. Até comemorou seus 15 anos com uma turma de góticos no cemitério do centro... Definitivamente ela não era uma garota muito animada.

Um dia, indo para a escola, Bela Entorpecida encontrou um negão, que não lhe era muito estranho. Ele a esperava numa esquina próxima da escola e a chama para um beco escuro:

- Vem cá mocinha, tenho um bagulho bom pra ti.

Bela Entorpecida mesmo ouvindo todos os conselhos dos seus pais sobre as drogas, resolve experimentar e dá seu braço à prova. Fura-se com a agulha amaldiçoada. Desde então, Bela Entorpecida passa a fazer jus ao nome e se entrega ao vício. Passa a cheirar desde grama até enxofre, tudo o que dissessem que era barato ela usava, mesmo que barato não fosse. Vende seu corpo e aceita até pagamento parcelado.

Em um dia chuvoso de fevereiro, houve uma liquidação geral de narcóticos em BH. Era um dia estranho para Bela Entorpecida, era um dia animador. Mas ela se empolgou demais, ultrapassou os limites. Misturou diversas qualidades de entorpecentes, teve então uma overdose e ficou em coma. Os médicos não têm previsão para sua alta. Ela estava inconsciente, e permaneceu dormindo por meses. Ninguém sabia dizer quando ela acordaria. E se acordaria.

O tempo passou para Bela Entorpecida, assim como passa para todos. E ela morreu. Isso porque o príncipe que a salvaria com um beijo apaixonado, encontra-se agora gravando alguma versão dos contos de fadas da Walt Disney. Lá está ele, no set de gravações, com lindas e perfumadas damas que aguardam por sua chegada, num lugar onde a arte não imita a vida.