sábado, 9 de janeiro de 2010

Contos de fadas modernos

Você já notou como tudo o que assistimos e lemos influencia nossa personalidade? Um claro exemplo disso são os contos de fadas. Uma garotinha que cresceu ouvindo a babá contar a história de A Bela Adormecida vai crescer e esperar pelo seu príncipe encantado acordá-la com um beijo. Um garoto que mesmo relutante ouviu algum conto de fadas em sua vida pressupõe que a masculinidade de um homem se resume em procurar sua donzela, ser corajoso o bastante enfrentar dragões, bruxas e diversos perigos sem titubear. Na vida real não é isso que acontece. Uma adolescente sofre desilusão após desilução, após descobrir que o seu príncipe não era tão encantado assim. Um rapaz descobre que não é tão fácil quanto parece enfrentar os monstros da vida sem hesitar ou mostrar um pouco de sensibilidade. Os contos de fadas criam uma realidade paralela, onde são idealizados padrões de vida que são totalmente incompatíveis com nossa realidade.

Foi seguindo essa linha de pensamento e tomando como base o livro Contos de Fadas Politicamente Corretos - Uma Vesão Adaptada aos Novos Tempos do norte-americano James Finn Gardner (ótima leitura, fica aí a dica) que no ano passado, minha professora de Português fez uma proposta inédita de redação: sugeriu que fizéssemos um conto moderno, que se adequasse à realidade atual e urbana em que vivemos. Esse conto deveria ser baseado em um conto de fadas conhecido, já existente. Aqui está o conto escrito por mim e revisado pelo meu grupo de trabalho:


Bela Entorpecida


Nos dias modernos, na grande Belo Horizonte, havia um casal muito pobre, que vivia na periferia da cidade. A mulher se chamava Nazaré e seu marido, Josivaldo.
Num dia mais cinza do que o comum, Nazaré chegou do trabalho exausta. Ela estava ajudando em uma reforma na casa de João e Maria e sentia enjoos frequentes. Pensou que pudesse ser devido aos doces e guloseimas na obra, mas ela estava enganada. O HCG comprovou: Nazaré estava grávida! Ela pensou consigo mesma: “Mais uma boca pra alimentar! Vou ter que fazer hora extra!”

Josivaldo trabalhava como traficante e estava agora numa viagem rápida à Colômbia para trazer a mercadoria. Ao retornar e saber da notícia, não se alegrou também. Eram tempos difíceis. Sustentar a casa, a família e os policiais não era fácil. “Preciso aumentar o carregamento”, pensou ele. Disse ele para Nazaré:

- Você vai ter que fazê umas faxina na casa da Branca de Neve, muié. Lá, com aquela anãzada toda, tem sempre muita coisa pra limpá. Vai se mexê porque agora a coisa ta preta, viste.

A família já tinha três filhos e com a chegada de Bela Entorpecida a situação exigiria medidas drásticas. Então Josivaldo resolve delegar algumas tarefas aos seus filhos:

- Ô Cleiton, cê trata de vendê essas bala aqui no sinal, senão quem leva bala é tu.

- Raimunda, tu vai trabaiá de manicura aqui no morro.

- Bastião, tu vai pro meio da rua fazer malabarismo com essas bolinha aqui. Imbaxadinha, impiná no nariz, num me interessa. Te vira.

Com o tempo, a situação se agravou. Os nove meses se passaram e a Bela Entorpecida nasceu. Teve tiroteio no morro em comemoração e um pagode na laje para os mais íntimos. Todos queriam conhecer a filha do respeitado traficante.

- Pode chegá povo, a menina é bonita memo. Minha cara. – Disse Josivaldo enquanto trocava a faixa de reprodução no seu radinho furtado.

Durante a festa, chega um negão alto como um armário segurando um fuzil AR15 na mão. Ele estava com cara de poucos amigos, ou melhor, de nenhum amigo.

-Fiquei sabendo que tu tá dando festinha e não fui convidado, qualé? Tá me tirando?

Josivaldo quase se engasgou com o churrasco de gato.

- Tu fica sabendo, mermão, que isso não vai ficar assim não... Quando essa mina tivé 15 anos eu vou fazê dela a maior viciada do morro. Ela vai se injetá até por dentro dus olho.

Todos ficam aflitos e na mesma hora Nazaré escondeu todos os narcóticos que tinha em casa. O pai, preocupado, decide largar esse trabalho e desde as primeiras palavras da Bela Entorpecida já a ensina dos males que a droga faz.

Bela Entorpecida cresce e vira uma emo. Toda de preto e escutando Evanescence, ela percorre o morro, melancolicamente, sempre com seus fones de ouvido. Talvez ela tivesse medo de ouvir o que o mundo tinha a dizer para ela. Ela era estranha. Até comemorou seus 15 anos com uma turma de góticos no cemitério do centro... Definitivamente ela não era uma garota muito animada.

Um dia, indo para a escola, Bela Entorpecida encontrou um negão, que não lhe era muito estranho. Ele a esperava numa esquina próxima da escola e a chama para um beco escuro:

- Vem cá mocinha, tenho um bagulho bom pra ti.

Bela Entorpecida mesmo ouvindo todos os conselhos dos seus pais sobre as drogas, resolve experimentar e dá seu braço à prova. Fura-se com a agulha amaldiçoada. Desde então, Bela Entorpecida passa a fazer jus ao nome e se entrega ao vício. Passa a cheirar desde grama até enxofre, tudo o que dissessem que era barato ela usava, mesmo que barato não fosse. Vende seu corpo e aceita até pagamento parcelado.

Em um dia chuvoso de fevereiro, houve uma liquidação geral de narcóticos em BH. Era um dia estranho para Bela Entorpecida, era um dia animador. Mas ela se empolgou demais, ultrapassou os limites. Misturou diversas qualidades de entorpecentes, teve então uma overdose e ficou em coma. Os médicos não têm previsão para sua alta. Ela estava inconsciente, e permaneceu dormindo por meses. Ninguém sabia dizer quando ela acordaria. E se acordaria.

O tempo passou para Bela Entorpecida, assim como passa para todos. E ela morreu. Isso porque o príncipe que a salvaria com um beijo apaixonado, encontra-se agora gravando alguma versão dos contos de fadas da Walt Disney. Lá está ele, no set de gravações, com lindas e perfumadas damas que aguardam por sua chegada, num lugar onde a arte não imita a vida.


5 comentários:

  1. Nossa, realmente muito bom. Retrata a fútil população existente nos dias de hoje.

    ResponderExcluir
  2. Esse eu também já conhecia :3
    Estou me sentindo exclusivo de ter tido a oportunidade ler esses textos antes, auhahuahuahua.

    Continue postando, Ítalo!
    A propósito, belo layout do blog, hein Q

    ResponderExcluir
  3. Adoro esse texto. Viaja em relação aos outros reecontos que já li. E isso pra mim é criatividade! (:

    Parabéns!

    ResponderExcluir
  4. Adoro esse texto!!!
    Tudo lindo, imagem, nome, primeiro post...meus parabéns!!!!

    ResponderExcluir