sábado, 30 de janeiro de 2010

Meninos de rua

Ontem ele acordou feliz. Era feriado. Isso significava que era um dia de fazer absolutamente nada e ele esperava fazer isso da maneira mais prazerosa possível. Nada de escritório, nada de sapatos apertados, era um dia livre. Ligou o radinho no volume máximo e foi para o banheiro. Enquanto tentava aceitar que definitivamente sua voz não era mais bonita do que a de Chris Martin, ia ouvindo o noticiário da manhã.

Ele odiava noticiários. Era sempre a mesma coisa. Assaltos, assassinatos, enchentes, secas. Sempre as mesmas catástrofes, os mesmos infortúnios assolavam o mundo. Nada que surpreendesse ele, um habitante do planeta, mesmo que fosse relativamente jovem. Droga. Ele não queria ter pensado isso. Não conseguia pensar em pessoas que nem tinham água potável enquanto ele tomava um banho demorado. Um minuto depois tinha parado de cantar e já não sorria.

Enxugou-se lentamente e se encarou no espelho do armarinho do banheiro. Bela porcaria de humano era ele. Já estava achando melhor voltar para a cama, fechar as cortinas e colocar o celular para despertar quando fosse meio-dia. Talvez o sono tivesse a resposta para aquela inquietação que ameaçava se transformar em culpa e estragar seu feriado. Já estava sentado na cama quando do radinho saiu uma voz adulta que apelou:

- Dia das crianças. Qual o sentido de comemorar esse dia e dar vivas a Nossa Senhora Aparecida se hoje a infância quase não existe mais? Todos nós temos hoje a oportunidade de provar que a insensibilidade não dominou as grandes cidades. Proponho que cada um faça pelo menos hoje, uma criança feliz. Ninguém é tão pobre que não possa dar um brinquedo, um doce, um sorriso. Vamos mostrar que nos importamos com a infância desamparada de São Paulo e que de fato fazemos algo para que ela seja diferente. Nem que seja um pouquinho.

Aquela voz penetrou na sua pele como uma emissão radioativa. Atravessou seus tecidos e aqueceu seu coração. Quando se despiu e começou a vestir suas roupas domingueiras, já cantarolava novamente e achava seu timbre tão bonito quanto o do Chris e até mesmo melhor que o da Susan Boyle. Tomou o café na sua varandinha, dando um bom dia para a São Paulo que despertava. Saiu de casa e tomou o ônibus. Ele já sabia onde faria sua boa ação do dia.

Ele chegou à Praça da Sé e deu uma olhada a sua volta. O que ele procurava não era muito difícil de encontrar. Não, não. Hoje ele não olhou para as bancas de jornal e nem pensou em ir à livraria. Tocado pelo espírito da caridade ele só tinha olhos para aquelas figuras esquálidas e sombrias que ora brincavam na fonte, ora corriam perto da estação de metrô. Largadas, como restos de lixo. Uma coisa interessante é que ele nunca reparou nelas. Sempre passava por ali, mas nunca deu atenção. Ele era mesmo um ser humano repugnante. Como ele podia ver aquela cena todo dia e nunca ter feito nada?

Antes tarde do que nunca, pesou ele consigo mesmo, enquanto arrastava seus passos até eles, pensava no que seria melhor: Dar-lhes os cem reais que trouxe? Ir comprar doces e trazer para eles? Analisando o leque de possibilidades, ficou a poucos metros das crianças e disse:

- Hey, vocês! – Imediatamente alguns deles se levantaram assustados, pensando que ele fosse alguém do conselho tutelar que não dava sossego nem nos feriados. – O que gostariam de...de...comer?

Silêncio. E a falta de léxico pairando entre eles.

Por fim, o garoto que parecia ser o mais velho disse:

- Três hambúrgueres daqueles que vende ali para a gente. Três para cada.

Bom, o dinheiro dava tranquilo. O problema era que tinha trazido apenas sua nota de cem reais. Droga. Vendedores são muito chatos para trocar grandes quantias.

- Mas eu...eu só tenho essa nota. É muito. – disse ele a tirando a carteira.

- Não tem problema. – sorriu o garoto. Com uma agilidade espantosa arrancou a nota da mão dele e saiu correndo. Os outros o acompanharam rindo.

Parabéns, que legal. Nem dinheiro para voltar para a casa ele tinha. E o tour da caridade ia acabar ali pelo visto. Se odiou por não ter tentado trocar o dinheiro em algum lugar primeiro. Sentou-se num banco próximo e desacreditou nas pessoas. O mundo era assim mesmo, sempre foi e sempre será. Além do mais...

Antes de concluir seus pensamentos alguém cutucou suas costas. Ele se vira.

- O troco. – disse o menino de rua sorrindo. Numa mão ele equilibrava três hambúrgueres junto ao peito e com a outra estendia um punhado de notas e pratinhas.

6 comentários:

  1. Meu Deus do céu!
    Que texto! Que final! Que, ai. Até suspirei aqui. Eu jurava que, pelo andar da carruagem, o texto terminaria daquela forma desesperançosa característica de alguns discursos teus, Ítalo. E não é que eu me enganei?
    Gostei muito! Fiquei bastante surpreso e gostei de me sentir assim. Parabéns! Escreva mais inétidos para lermos.

    Um abraço!

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  2. Ítalo, não sabia desse seu dom! Saiba que seus textos acaba de ganhar uma admiradora. Você é muito bom! Continue escrevendo. Este foi o primeiro texto seu que leio, e creio que ainda vou me surpreender mais e mais.

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  3. Adorei seu texto.Eu odeio ver crianças na rua e mais uma vez pude me sentir impotente.

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  4. Pow que forte! Adorei o seu texto. Esse texto toca no coração da pessoa.

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